Durante dez anos, a artista gráfica pernambucana Joana Lira criou e desenvolveu o projeto de cenografia e identidade visual do Carnaval do Recife. O feito a levou para o famoso Instituto Tomie Ohtake, onde esteve com a exposição “Quando a vida é uma euforia”. Joana é uma das participantes do evento RioMar Entre Elas, que acontece no dia 13 de março. Nesta entrevista ao Viva RioMar, ela falou sobre a Joana criativa, empreendedora, mulher, mãe.
1. Desde 1999, você vive em São Paulo. Sentiu algum preconceito por ser nordestina?
Tive a sorte de chegar em São Paulo na época do Manguebeat, onde o Brasil tinha olhos pra Recife e achava tudo muito curioso e interessante. Também trabalho no meio das artes que por sua natureza já é menos rígido em alguns conceitos. Mas mesmo assim, senti preconceito em casos muito sutis e aprendi a tirar proveito de ser uma mulher baixinha nordestina em terras paulistas. Aprendi a dar chave de braço com toda doçura, quando ninguém dava nada por mim (rs).
2. O que mais lhe inspira no nosso Carnaval? Como ser inovadora sem se repetir ao longo dos anos?
Nossa cultura é tão rica que nem cabe toda em uma única inspiração. Precisei fazer 10 anos de cenografia pra ter a certeza que a cultura pernambucana carnavalesca é um sem fim de riqueza e abordagem. Ser inovadora sem se repetir é um desafio e tanto. Até acho que fui inovadora olhando pra trás e vendo toda linguagem gráfica que construí ao longo dos 10 anos que fiz parte da equipe de cenografia do Carnaval, porém não há como não se repetir quando se quer justamente imprimir uma linguagem, uma comunicação. Aprendi isso com João Roberto Peixe, que foi o secretário de Cultura que criou o conceito do Carnaval Multicultural do Recife e que nos “encomendou” a identidade visual e cenografia para o Carnaval em 2001.
3. O seu traço já é conhecido. Mesmo tendo feito a identidade de produtos e materiais diversos, é possível identificar sua marca. Quais são as suas referências?
Posso começar dizendo que acho uma vitória conseguir chegar a uma linguagem artística que é reconhecida. Porém, posso dizer também que quando uma linguagem começa a ser reconhecida bravamente, você passa pela cilada de ficar numa prisão criativa, onde só há repetição e não mais criatividade de fato. Talvez seja por isso que sempre fecho alguns ciclos no auge do reconhecimento. Trabalhei 10 anos com cerâmica, 10 anos com a cenografia, mais um tanto com produtos, e vivo em busca de outro desafios. Sou bem inquieta. Sobre influências, sou muito atenta ao que me emociona, e isso pode ser um filme, uma paisagem, um trabalho de arte de alguém que vi no Instagram, enfim, tudo. Minhas influências e referências estão sempre em movimento e nunca vou querer fechar esta porta, porque isso é que alimenta meu trabalho artístico. Sobre o traço que imprimi no Carnaval e que se desdobrou em produtos e outros suportes, tenho uma resposta: minhas referências são várias. Passeio pelas culturas de nossa formação, principalmente a negra, pelos clássicos Picasso, Matisse e Hundertwasser. Também por Niki de Saint Phale e Keith Haring. E muito pela xilogravura, pela elegância de Samico, pelas iluminogravuras de Ariano e por aí vai.
4. Filha de um arquiteto renomado, o sobrenome abriu portas ou foi mais difícil?
Na fábula da formiga e da cigarra, sempre me identifiquei muito mais com a formiga. E foi o que sempre meu pai me ensinou. Nunca me vi como cigarra, nem ele. Aqui na minha família, somos todos gente que trabalha muito e que tem prazer nisso: eu, meu pai, minha mãe e meus irmãos. Sem falar que sou desconfiada, não acredito em nada que vem muito fácil. Por isso, nunca usei esse artifício de ser filha para conseguir algo. E por isso tudo mudar pra São Paulo e conquistar sozinha meu espaço teve um gostinho muito especial.
5. Em que momento teve coragem de ser dona do seu próprio tempo, sendo empreendedora, cuidando da própria marca?
Desde sempre. Nunca tive emprego. Na minha trajetória, tive dois estágios e caí no mercado, levando na cara e aprendendo sozinha. Gosto do jogo do negócio. E é curioso porque nem todo artista gosta desta parte. Sempre gostei e acho que sou muito intuitiva. Confio no meu taco.
6. Existe preconceito no mundo das artes gráficas com as mulheres?
As mulheres são seres tão fortes, mas tão forte que o mundo precisou durante muitos anos calá-las em todas as áreas de atuação, inclusive dentro de casa. Como cresci com espaço dentro de casa e sempre me impus muito profissionalmente, nunca deixei muita brecha pra que me enfrentassem assim. E não lembro de sentir um preconceito de frente. Se houve, fiz o favor de deletar da mente…rs. Mas é claro que há preconceito. Esta semana, inclusive, uma amiga querida divulgou nas redes dela meu trabalho da cenografia do Carnaval no Recife, pois fiz uma exposição sobre este tema aqui em São Paulo. E ela me disse que escreveram pra ela dizendo que não sabiam que tinha sido uma mulher que havia criado todos aqueles desenhos para a cidade. Fiquei pasma que estamos em 2018 e as pessoas ainda não sabem do que as mulheres são capazes de fazer e construir. Loucura…
7. Como você concilia família e trabalho? De que forma a vida em família com seus dois filhos influencia sua arte?
Esta conciliação é a verdadeira arte. Porque tudo fica mais difícil com a pressão social da mãe-mulher-bonita-bem-sucedida-com-saúde-e-feliz. Temos que ficar nos provando a cada segundo sobre tudo. Isso é uma insanidade, cansa, desgasta e deixa muita mulher fora do prumo, inclusive eu. Como meus filhos já estão mais crescidinhos (Joaquim tem 12 e Dora 6) hoje é mais fácil. Porém, faz um ano que me separei e agora vivo uma outra experiência também como mãe, que me aproximou mais ainda deles. Posso dizer que vivi muitos infernos mentais de culpa para não deixar de trabalhar, que sempre foi algo que me preencheu muito, quando eles eram bebês. Preferi seguir acreditando que alguma hora as coisas se encaixariam, e se encaixam. Meu ateliê é a um quarteirão da minha casa e tenho um tempo muito maleável, mas gosto de me concentrar no trabalho e também me dedicar a eles. Sou muito disciplinada, isto é chato, mas ajuda.
RioMar Entre Elas
Um evento voltado para debater questões do universo feminino pontuadas pelas próprias mulheres. Pelo segundo ano consecutivo, é realizado em março, quando se comemora o mês da mulher, o evento RioMar Entre Elas. No encontro, serão debatidos temas como inovação e criatividade, empreendedorismo e empoderamento feminino.
Nomes de peso em cada área como Martha Gabriel, a atriz Zezé Motta, a blogueira Rayza Nicácio e as empreendedoras pernambucanas Dona Coxa e Joana Lira estarão presentes. Será no dia 13 de março, a partir das 18h, no Teatro RioMar. Os ingressos custam R$ 40 e R$ 20 (meia) e já estão à venda na bilheteria do teatro e também online.
Deixe seu comentário
Você deve estar conectado para postar comentário.